"O Livro", aquele que para mim é único - Gente Feliz com Lágrimas de João de Melo
13/12/2016 by Paula
Joel Neto é o nosso convidado de hoje!! Quase dispensa apresentações, pois muito já se ouviu falar dos seus romances mais recentes: "Arquipélago" e "A Vida no Campo" são obras que têm sido muito discutidas e divulgadas! É Açoriano, natural de Angra do Heroísmo e escrever sempre foi uma prioridade.
O Joel, traz-nos um livro que o marcou e que também é um marco na história da literatura - Gente Feliz com Lágrimas de João de Melo.
“A
miséria, sendo muito outra, era só coisa de espírito. Crescia no coração dos
meus pais, como a hera dos muros ou o trevo nos pastos, e chamava-se avareza. O
pão endurecia durante quinze dias e ganhava bolor – porque o forno gastava
lenha! O leite que devia calcificar-nos os dentes e os ossos era para vender à
fábrica: depois ficávamos a implorar uma fatia de pão de trigo com manteiga de
vaca,uma lâmina de queijo com pão da loja à merenda, e nada: segundo a mãe,
isso era comida de ricos.”
Completaram-se já vinte e cinco anos sobre a
publicação original de “Gente Feliz Com Lágrimas”, e as edições já
ultrapassaram as vinte e cinco também – fora traduções. O livro venceu o Grande
Prémio Romance de Novela APE de 1989, batendo o favoritíssimo “Missa In Albis”
(Maria Velho da Costa), e mantém-se não só um dos mais importantes da
literatura centrada no imaginário açoriano, mas uma das minhas primeiras e mais
incontornáveis referências, como escritor e como homem. Alguns dos mais
importantes louvores declararam-no herdeiro do chamado realismo mágico, à
maneira de García Márquez ou Scorza e, antes destes, Uslar Pietri. Sê-lo-á,
porventura, no modo como transporta para os Açores dos anos 1950/1960 uma parte
da atmosfera fantástica – embora mais no domínio do estranho do que do
maravilhoso – que povoou boa parte da melhor literatura sul-americana desse
mesmo período. Quanto ao resto, dificilmente haverá alguma coisa de mágico no
arquipélago de João de Melo,
a não ser eventualmente a paisagem e – essa, sim – a experiência da linguagem, pisando a cada instante os territórios da poesia. Falamos sobretudo de um marco colossal da literatura portuguesa do século XX – o século do povo e da fuga – e, seguramente, da mais importante referência da literatura das ilhas desde (pelo menos) “Mau Tempo no Canal”. Em causa está, agora, não já talvez esse princípio nemesiano de que, para o povo dos Açores, a geografia é tão importante como a história, mas muito mais a ideia universal e universalista de que cada homem é uma ilha, partilhada também notoriamente por Saramago. O que não deixa, em todo o caso, de constituir um discurso sobre a geografia e a sua relação com a história, aqui interiores e amalgamadas numa só impressão não totalmente definível. Numa São Miguel escondida por detrás das montanhas, num lugarejo de onde não se vai a Ponta Delgada mais do que uma vez ao ano, três irmãos suportam uma infância de brutalidade e carência, às ordens de pais frequentemente desterrados num mundo só deles. Proporcionam-se-lhes, em diferentes momentos da adolescência, fugas distintas: a vida monástica à rapariga, o seminário ao mais novo e o exército ao mais velho. À sua maneira, cada um se encarregará de detonar também essa escapatória – e todas as três vidas acabarão por redundar em mosaicos particulares de sucessivas evasões. Em pano de fundo estão, à vez, a impossibilidade de permanecer ali mais um instante que seja, entre homens brutais só esporadicamente capazes de um gesto de ternura, e a tentação do regresso, menos como evasão aos homens mansos só esporadicamente capazes de matar, tantas vezes íntimos das grandes cidades, do que à procura daquilo que ficou por dizer, da possibilidade não manifestada antes. A emigração, imposta ou não, é porém tragédia igual para um pescador levado para Massachusetts como para um bolseiro bem instalado em Princeton. Deixa as suas marcas indeléveis e inapagáveis – e intromete-se nas leis da termodinâmica. A infância é irrepetível, no espaço como no tempo, e a circunstância virá a baralhar os dados à disposição de Nuno Miguel, Maria Amélia e Luís Miguel. Ecos de Freud insinuam-se quando Nuno, personagem principal, dá por si a mimetizar atitudes recorrentes do pai, o primeiro algoz da sua infância. Todo o mal está na família, como todo o bem também: ela leva-nos ao colo e é a bola de ferro presa ao nosso pé. O poder do progenitor permanece, por isso, inexpugnável, e lidar com esse poder uma missão para concretizar à primeira tentativa. Nuno Miguel falhou e acaba por transportá-la ao longo da vida toda, incompleta. Incompleto. Um romance monumental – eis o essencial. Do título à nota com que encerra, e mesmo se nem sempre é fácil encontrar-lhe a melodia. Ou precisamente por causa disso. Narrativa polifónica, feita de fragmentos e memórias descontínuas, a cada instante determinada a somar centros de consciência, “Gente Feliz Com Lágrimas” mantém as costuras à vista, e talvez seja essa a sua suprema virtude. Escrito na primeira pessoa (embora, de certa maneira, o discurso de Marta sobre Nuno Miguel, o marido, constitua mais uma declinação para o ladrilho modernista), de modo a que, a dada altura, as personagens possam confundir-se umas com as outras – e o escritor com elas –, combina imagens de profunda riqueza com metáforas menos concretizadas e frases de métrica escorreita com rimas aparentemente a despropósito, numa opção técnica que, mais do que emular o modo atabalhoado de pensar das pessoas verdadeiras, convocando os princípios do chamado fluxo da consciência, constitui o rosto da sua visceralidade e do seu sangue. “A dor é assim uma nuvem perdida, e vem de dentro para fora. Por um instante, sente que ela se afia em si, num qualquer órgão inlocalizado do corpo. Depois é como se se tivesse convertido numa lâmina cega. Uma lâmina que se desloca de mansinho entre a pele e a carne, ou entre a infância e a ferida que agora se põe a boiar e depois se lhe atravessa toda no olhar.” Eis, pois, o grande enunciado “também” – e perdoe-me João de Melo se pareço acantoná-lo, coisa que ele nunca pretendeu nem merece – de muito do que fora antes dele e de outro tanto do que seria depois a literatura açoriana, de Antero a Cristóvão de Aguiar, de Roberto de Mesquita a Daniel de Sá, de Nemésio (sempre ele) a Dias de Melo, de Natália a Álamo Oliveira e de tantos outros a tantos mais ainda. O grande manifesto identitário de uma geografia que é, antes do mais e por direito próprio, um olhar sobre o mundo.
a não ser eventualmente a paisagem e – essa, sim – a experiência da linguagem, pisando a cada instante os territórios da poesia. Falamos sobretudo de um marco colossal da literatura portuguesa do século XX – o século do povo e da fuga – e, seguramente, da mais importante referência da literatura das ilhas desde (pelo menos) “Mau Tempo no Canal”. Em causa está, agora, não já talvez esse princípio nemesiano de que, para o povo dos Açores, a geografia é tão importante como a história, mas muito mais a ideia universal e universalista de que cada homem é uma ilha, partilhada também notoriamente por Saramago. O que não deixa, em todo o caso, de constituir um discurso sobre a geografia e a sua relação com a história, aqui interiores e amalgamadas numa só impressão não totalmente definível. Numa São Miguel escondida por detrás das montanhas, num lugarejo de onde não se vai a Ponta Delgada mais do que uma vez ao ano, três irmãos suportam uma infância de brutalidade e carência, às ordens de pais frequentemente desterrados num mundo só deles. Proporcionam-se-lhes, em diferentes momentos da adolescência, fugas distintas: a vida monástica à rapariga, o seminário ao mais novo e o exército ao mais velho. À sua maneira, cada um se encarregará de detonar também essa escapatória – e todas as três vidas acabarão por redundar em mosaicos particulares de sucessivas evasões. Em pano de fundo estão, à vez, a impossibilidade de permanecer ali mais um instante que seja, entre homens brutais só esporadicamente capazes de um gesto de ternura, e a tentação do regresso, menos como evasão aos homens mansos só esporadicamente capazes de matar, tantas vezes íntimos das grandes cidades, do que à procura daquilo que ficou por dizer, da possibilidade não manifestada antes. A emigração, imposta ou não, é porém tragédia igual para um pescador levado para Massachusetts como para um bolseiro bem instalado em Princeton. Deixa as suas marcas indeléveis e inapagáveis – e intromete-se nas leis da termodinâmica. A infância é irrepetível, no espaço como no tempo, e a circunstância virá a baralhar os dados à disposição de Nuno Miguel, Maria Amélia e Luís Miguel. Ecos de Freud insinuam-se quando Nuno, personagem principal, dá por si a mimetizar atitudes recorrentes do pai, o primeiro algoz da sua infância. Todo o mal está na família, como todo o bem também: ela leva-nos ao colo e é a bola de ferro presa ao nosso pé. O poder do progenitor permanece, por isso, inexpugnável, e lidar com esse poder uma missão para concretizar à primeira tentativa. Nuno Miguel falhou e acaba por transportá-la ao longo da vida toda, incompleta. Incompleto. Um romance monumental – eis o essencial. Do título à nota com que encerra, e mesmo se nem sempre é fácil encontrar-lhe a melodia. Ou precisamente por causa disso. Narrativa polifónica, feita de fragmentos e memórias descontínuas, a cada instante determinada a somar centros de consciência, “Gente Feliz Com Lágrimas” mantém as costuras à vista, e talvez seja essa a sua suprema virtude. Escrito na primeira pessoa (embora, de certa maneira, o discurso de Marta sobre Nuno Miguel, o marido, constitua mais uma declinação para o ladrilho modernista), de modo a que, a dada altura, as personagens possam confundir-se umas com as outras – e o escritor com elas –, combina imagens de profunda riqueza com metáforas menos concretizadas e frases de métrica escorreita com rimas aparentemente a despropósito, numa opção técnica que, mais do que emular o modo atabalhoado de pensar das pessoas verdadeiras, convocando os princípios do chamado fluxo da consciência, constitui o rosto da sua visceralidade e do seu sangue. “A dor é assim uma nuvem perdida, e vem de dentro para fora. Por um instante, sente que ela se afia em si, num qualquer órgão inlocalizado do corpo. Depois é como se se tivesse convertido numa lâmina cega. Uma lâmina que se desloca de mansinho entre a pele e a carne, ou entre a infância e a ferida que agora se põe a boiar e depois se lhe atravessa toda no olhar.” Eis, pois, o grande enunciado “também” – e perdoe-me João de Melo se pareço acantoná-lo, coisa que ele nunca pretendeu nem merece – de muito do que fora antes dele e de outro tanto do que seria depois a literatura açoriana, de Antero a Cristóvão de Aguiar, de Roberto de Mesquita a Daniel de Sá, de Nemésio (sempre ele) a Dias de Melo, de Natália a Álamo Oliveira e de tantos outros a tantos mais ainda. O grande manifesto identitário de uma geografia que é, antes do mais e por direito próprio, um olhar sobre o mundo.
Joel Neto
É sem duvida um grande livro, que tive o prazer de ler em 2016.
Grandioso e cruel.
Adorei apesar da miséria, da crueldade com as crianças e com os animais.
Um Portugal desconhecido para muitos de nós, de uma geração bem mais nova.
Bjs
Ducle, vou adquirir para ler :)
bjs