"O Livro" aquele que para mim é único por Rute Simões Ribeiro
28/09/2017 by Lígia
Rute Simões
Ribeiro é a nossa convidada de
hoje!
Rute Simões Ribeiro nasceu em Coimbra, Portugal, a 17
de novembro de 1977. Ensaio sobre o Dever (Ou a Manifestação da Vontade)», é o seu primeiro romance e foi uma das cinco obras Finalistas do Prémio LeYa 2015, com o título que recebeu originalmente, "Os Cegos e os Surdos". É
licenciada em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra, especializada em
Administração Hospitalar pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade
NOVA de Lisboa, onde desenvolve um Doutoramento em Políticas de Saúde Pública e
é investigadora. É mãe de dois filhos e vive atualmente em Lisboa.
“Posso fazer batota? Vou fazer.
Fico sempre intimidada
com o compromisso. Eu sou de tantas maneiras, tão variada, sempre em processo
de completamento, há por aqui um espaço tão amplo para cá caber tudo o que
chegou e encontrou lugar, que não sou competente em fazer escolhas. De qualquer
modo, estudei-me e encontro dois livros que são próximos do caminho que fui
fazendo na minha própria expressão literária. As Intermitências da Morte, de José Saramago, e A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi,
na tradução do russo de António Pescada. Não tenho nenhuma fixação pelo fim
disto que somos e sabemos, mas a exploração deste evento no campo coletivo, no
caso de Saramago, e no campo individual, no caso de Tolstoi, é um trilho claro,
lúcido sobre a vida, sobre a questão de todas as certezas e convenções. E isso,
sim, é uma inquietação minha.
Depois, o tesouro
literário em duas obras permanentes. As palavras encorpadas, altivas, cheias de
Saramago. Acrobáticas. É um livro gigante, um livro-lição. Saramago escreve sem
medo. E Tolstoi elevado, elegante, limpo, um passeio por um homem e nele todos
nós. Trata a honestidade franqueada. Os dois experimentaram, exibindo, na
coletividade e na individualidade, o que em vivos fazemos sobre a morte que
antecedemos. São livros que nos estudam. A morte está a pretexto, é um
empréstimo à lição, como uma maçã que faz de centro do sistema solar na mão da
professora. Nada é sobre a maçã, é sobre as nossas escolhas na bolha que a
orbita.
Em Saramago, o início
da história acontece na suspensão do fim, num estado de «morte parada», «contrário às
normas da vida». A morte “acabara”, desaparecera. Morrera? O diálogo entre
o primeiro-ministro e a eminência é um atrevimento: «a igreja (…) habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não
posso imaginá-la a dar outras». A presunção, num «futuro sem morte», de «um
deus ausente». E a necessidade da morte, alcançável no outro lado da
fronteira, onde ainda estava «em vigor»:
«os mortos tinham querido morrer», «se não voltarmos a morrer não temos futuro».
Saramago dá, por fim, corpo à morte, personifica-a, fá-la enamorar-se de um violoncelista,
desapegado de todas as convenções da narrativa: «a morte soube o que era ter um cão no regaço». Ela «é discreta, prefere que não se dê pela sua
presença, especialmente se as circunstâncias a obrigam a sair à rua» e
procede a operações de «falecimento-pelo-correio».
O inigualável sarcasmo: «Somos
testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num lençol,
mora numa sala fria (…) com grandes gavetões recheados de verbetes». Os
diálogos extraordinários: «Não se rale,
senhora morte (…), temos andado a ver quem se cansava primeiro, se a senhora ou
nós, compreendo o seu desgosto»; «tua
irremediável humanidade»; «parada
diante do espelho. Não sabe quem é». E o fim sem fim, igual ao princípio: «No dia seguinte ninguém morreu».
Se Saramago escancara,
Tolstoi insinua. Em A Morte de Ivan
Ilitch, há a morte de um homem e a vida que a antecede. Não só os factos,
mas a sua apreciação, a observação dos critérios e emoções que orientaram
decisões, escolhas e resignações, ao longo de uma vida «simples e vulgar e por isso a mais horrível». Há mais neste livro
do que as linhas que foram escritas: «cometera
alguns actos que a princípio lhe pareciam vis (…) mas depois, vendo como (…)
eram cometidos e altamente considerados por pessoas de elevada posição (…)
deixou de se afligir ao recordá-los»; «Ivan
Ilitch nunca abusava do seu poder; (…) mas a consciência desse poder, a
possibilidade de suavizá-lo constituíam para ele o principal interesse e
atractivo do seu novo cargo»; «assumiu
para com o governo um tom de leve descontentamento, de liberalismo moderado»;
«fez um favor a si próprio ao obter
aquela esposa», mas «a mulher, sem qualquer razão (…) começou a perturbar o
prazer e o decoro da vida: (…) exigia atenções para consigo». Ivan Ilitch é
um homem que se moldou às convenções da vida, até que se encontra com a ideia
da morte: «onde estarei eu quando não
existir? Será isso morrer?» e conflitua com a ilusão do controlo: «sabia que estava a morrer, mas (…) não
estava acostumado a isso». A caminho do final (do livro e da sua vida),
assistimos a um diálogo interior, a uma luta argumentativa consigo próprio e
perante os outros, de razões e emoções, porque as que acumulara durante a vida
não lhe serviam agora: «o medonho acto da
sua morte era rebaixado por todos (…), com esse mesmo “decoro” com que ele
servira ao longo de toda a sua vida», «de
repente sentiu toda a fraqueza daquilo que defendia». No último capítulo do
livro, estamos na pele de Ivan Ilitch, sofremos por ele (por nós?), no momento
em que a morte lhe vem, o toma, o faz transcender a vida. Ao contrário dos que
deixa para trás (na vida), Ivan tem tempo de perceber que afinal tudo está bem,
que se “acabara” a morte, que deixara de existir, assim que chegou.
Em Saramago, há uma
morte parada, que se ausenta, que transtorna por inexistir. Em Tolstoi, há uma
morte inexorável, inevitável, que incomoda por estar a vir. Em As Intermitências
da Morte, é querida; em A Morte de Ivan Ilith é temida. Se no
primeiro, ela se suspende e no segundo, ela chega, elas (as mortes) são, porém,
iguais. Nos dois exercícios, a morte afinal inexiste, só a ideia dela é.
Contentemo-nos com a vida, então.
Mas cedo ainda à minha
natureza - incapaz de seleção - e a outros livros da minha vida, porque também
me compõem. A Sibila de Agustina
Bessa-Luís, pela plenitude e acuidade semântica, pelo depósito da humanidade
inteira em meia dúzia de linhas. Não haverá nunca quem venha a escrever como
ela. E o remorso de baltazar serapião,
de Valter Hugo Mãe, pelo furação de livro que era preciso ser escrito, em
construções frásicas que ninguém, para além dele, consegue fazer com que fiquem
bem. A Queda, de Camus, na tradução
de José Terra, pelo ritmo de uma confissão, num perfeito discurso monológico
(não sei se esta palavra existe, mas faz-me falta). Capitães da Areia, de Jorge Amado, que me ensinou a necessidade das
palavras simples. Contou, sem a aflição da perfeição, as coisas que todos
precisamos ler.
Daqui a cinco anos,
voltem a perguntar, sim? ;) “
Fico sempre tão feliz quando vejo alguém mencionar o Capitães da Areia! Se há livro que me ensinou o amor pela leitura, foi esse.
Olá Bárbara.
Pensei o mesmo quando li "Os Livros que são únicos" para esta autora.
Para mim é o melhor livro que li de Jorge Amado, é uma obra sempre atual.
Beijinhos e bom fim-de-semana.
O outro dia, enquanto esperava na fila dos CTT, peguei em "Capitães de Areia" e li umas quantas páginas e claro, trouxe o livro comigo!! Ainda não retomei a leitura, mas quando uma obra nos cativa logo nas primeiras páginas não há volta a dar!!