O meu convidado de hoje é o nosso conhecido e simpático Fernando Évora


Fernando Évora é autor do recentemente publicado “Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa”. Antes editou “A fonte de Mafamede”, “Como se de uma fábula se tratasse” e "No país das porcas-saras". Nasceu em Faro, em 1965, tendo vivido entre o Algarve e o Alentejo.  É também professor de História. 




Quando fiz 12 anos os meus pais ofereceram-me “O livro de San Michele”. Até então já tinha lido meia dúzia de livros. Talvez umas aventuras dos “cinco” ou dos “sete”, por quase obrigação geracional, os “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes, porque me encantara com os excertos que então povoavam os manuais do ciclo preparatório, e “David Copperfield” que encontrara em casa e porque ouvia falar de Charles Dickens como um autor importante, coisa que se tinha que ler na vida, e quanto antes melhor. Mas aquela prenda de anos era o primeiro livro, daqueles que julgava com L grande, que verdadeiramente me ofereciam. E eu nunca ouvira falar, sequer no autor. Devia ser bom, para os meus pais me oferecerem, pensei muito justamente. Ainda por cima era o número um da coleção “Dois Mundos”, e se o tinham escolhido para número um, por boa razão seria.
Lembro bem esses dias em que o li: era Verão, que Agosto é o meu mês de aniversário, e estava na Zambujeira do Mar. Iniciei a leitura do “Livro de San Michele” com alguma solenidade, cheio de expectativas de ser transportado para outro mundo (como me acontecera, sobretudo, com os “Esteiros”). Mas a coisa ficou difícil. Aquilo começava com um rapaz sueco recém-formado em medicina que ia para a ilha de Capri. Nas primeiras páginas havia uma carrada de italianismos que me escapavam ao entendimento. O livro era, dir-se-ia em linguagem dos dias de hoje, uma “seca”. E eu avançava nele devagarinho, muito devagarinho, apenas por obrigação para com tão importante presente. Então, no início do livro que já não era início de leitura, recebi na Zambujeira  a visita dos meus pais (que belos hábitos esses de passar férias aprendendo o mundo dos avós). Recordo que estava com o meu pai no terraço da casa na Zambujeira, alcançando com o olhar as dunas para os lado dos Alteirinhos, quando lhe confessei o meu problema: não estava a gostar do livro, era um sacrifício que fazia e parava logo passado duas ou três páginas. Esperava que ele me libertasse da penosa tarefa de o ler. “Vais em que página?”, perguntou-me o meu pai. “47”, respondi. E ele observou-me, com toda a naturalidade, como se fosse uma lei da literatura (ou pelo menos dos leitores de livros):
- Um livro nunca se deixa antes de chegar à página 100!
Convencido daquele princípio civilizacional, mas aliviado por já só ter de ler pouco mais de cinquenta páginas, do mal o menos, retomei a leitura.
E, então, aconteceu: apaixonei-me pelo “Livro de San Michele”. Talvez os doze anos sejam a melhor altura para se ler um livro. Vive-se intensamente os personagens, bebe-se avidamente a ficção porque não se conhece ainda a realidade. Agora, que me obrigam a pensar nisso, julgo que talvez poucas coisas tenham mudado tanto a minha vida como “O livro de San Michele”. Pude comprová-lo quando há alguns anos, pouco depois de ter passado a barreira psicológica dos quarenta, me resolvi a relê-lo.  Descobri que quase todo eu estava ali. A minha admiração para com a bicharada (pouco depois de ler o livro queria ser zoólogo, todos os meus livros – vejo agora – têm algo a ver com bichos, mais que não seja no título); o tremeluzir das noites de luar mediterrâneo, o balançar da vida entre as piadas do absurdo da existência, do amor e da liberdade; a eterna dúvida sobre a existência de duendes.
Convém dizer, a quem não conhece, que “O livro de San Michele”, é um romance quase autobiográfico de Axel Munthe. Axel Munthe era médico (tantos médicos que deram bons escritores!) sueco e viveu grande parte da vida em Capri (mas também em Paris ou em Milão nos tempos da cólera). Viveu com ricos e pobres, mas parece-me que gostava particularmente de animais (um outro livro, muito giro, de Munthe, é “Homens e bichos”).  
Hoje tenho a certeza que não morrerei sem visitar Capri e rumar à villa San Michele. Talvez por isso tenha vindo a adiar essa visita. Espero que a morte não me finte neste particular. E ainda conservo na minha inocência a lei da literatura que o meu pai me ensinou, a tal das cem páginas. Talvez por isso escreva livros com pouco mais de cem páginas, e goste de me certificar, discretamente que tento ser educado, se os meus leitores concluíram ou não a leitura dos ditos, o que tomo por indicador seguro da qualidade dos mesmos.
Por isso perceberão que tenha escolhido para “o livro que para mim é único” este “O Livro de San Michele" e não aquele que acho a maior obra-prima da literatura:  “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Márquez.

Fernando Évora

8 comentários:

    Olá Fernando,
    Revi-me um pouco neste texto em alguns pontos, nomeadamente em não abandonar um livro antes das 100 páginas e o compromisso de ler um livro oferecido por alguém de quem gostamos :D
    Eu como mãe fico preocupada quando recomendo um livro às minhas filhas :P fico sempre a pensar: “será o adequado??, “será que vou fazer com que não gostem de ler??” e falo sempre nisso das 100 páginas a elas…

    "O Livro de San Michele" não conheço. Os Cem anos de Solidão... quem sabe um dia :D

    Obrigado por ter participado na rubrica e muito sucesso!

     

    São os dois excelentes livros que, estou certo, irá gostar.
    Gostava de lhe agradecer este convite. Foi-me muito útil: pensei nos livros únicos da minha vida e recordei as emoções dessa leitura aos 12 anos de idade (se bem que tenha relido "O livro de San Michele" há não muito tempo, sinal de como gostei dele). E atrás das emoções da leitura relembrei também esses tempos, que de algum modo ainda vivem em mim. Por isso o seu convite proporcionou-me momentos de grande prazer e aprendizagem. Obrigado.

     

    É engraçado que não conhecia este livro.
    Mas decidi escrever este comentário para avisar os leitores deste blogue que estamos perante um grande escritor. O Fernando Évora (que não conheço pessoalmente e por isso considero a minha opinião desinteressada) é um escritor de excelência. Aconselho a todos.

     

    Para mim também foi dos livros mais belos que li. Ainda por cima o prazer de ler bom português. Lembro que o livro foi traduzido por Jaime Cortesão. Para alguns, a tradução era uma forma de sobrevivência, o que penso que não seria este o caso.
    Dizem que, até dada altura, este foi dos livros mais lidos, além da Bíblia. Lembro-me que também vi um filme, que se baseava neste livro, ou na vida do autor, aonde apareciam imagens da Villa e de Capri(o que seria também para mim um sonho conhecer), e também da revolta do médico, quando as pessoas contaminadas por uma epidemia,continuavam a pensar que a salvação estava em beijar os pés da imagem mais que contaminada.
    É claro que, depois deste livro, também não poderia deixar de ler "Homens e Bichos", do mesmo autor, onde também revela a sua grande sensibilidade.
    Permita-me o desabafo, mas acho estranho a confissão da Paula, porque me parece quase impossível que alguém não tenha lido "Os Cem Anos de Solidão", assim como "O Amor em Tempos de Cólera.
    Não sei porquê mas acho que "Gente Feliz com Lágrimas" de João de Melo, tem umas certas semelhanças com Os "Cem Anos De Solidão", talvez por juntar os problemas de várias famílias e gerações. Que lhe parece?
    Tenho este blogue nos meus favoritos, mas não tenho passado muito por aqui. Estou a comentar enquanto estou a ouvir os comentários das eleições norte-americanas. Espero que não fique em suspenso para muito tempo. Para já há um Estado onde as máquinas acusam o voto em Obama e a descarga fazia-se em Mitt...

     

    Olá Anfitrite, pois... não li "Cem anos de Solidão" mas vou ler :D Acho que agora tenho mesmo de ler... estou curiosa.
    Quanto "O Amor em tempos de cólera" já li e adorei! :D

     

    Anfitrite: gostei muito de ler o seu comentário. É bom partilhar opiniões sobre este, e outros, livros. Quanto às semelhanças com "Gente feliz com lágrimas", confesso que ainda não li. Bem vê este problema da literatura: "tantos livros e tão pouco tempo...". Mas certamente que o lerei proximamente. Na verdade já me falaram dele, só que nunca me tinham feito essa ponte para "O livro de San Michele"; agora que a fez, sinto mesmo que o tenho de ler.
    Obrigado :)
    (hoje de manhã fiquei feliz com o resultado eleitoral)

     
    On 06 maio, 2017 Lenea Bispo disse...

    Vejo que já escreveu este texto há imenso tempo. Hoje visitei o seu blogue e talvez visite a sua literatura , talvez ...
    E visitei o seu blogue porque acabei de visitar Capri . Escrevi no facebook um pequeno apontamento em que falava da minha mágoa por não ter feito em Capri o que gostaria de ter feito mas que não foi possível por ter estado lá apenas um dia e o ultimo barco de regresso foi às 16:30. .
    Uma das coisas era visitar a casa- museu de Axel Munthe .
    Apercebi- me dessa viagem que está agendada por si. Espero que já o tenha feito e de certeza, que no seu caso, será a primeira coisa a visitar...

    Gostei do blogue

    Lénea Bispo

     

    Lénea! Na verdade ainda não visitei Capri embora, como já disse, sinto que o tenha de fazer. mais: sinto que o farei. Talvez o não ter lá ido ainda queira dizer que tenho uma fé danada de que ainda viverei por muito tempo. Nºao será ainda este Verão. Espero, contudo que não passe muito tempo. Até porque, suspeito, deverei ter de caminhar muit (a Lénea confirmar-me-á). Visite ou não a minha literatura (o blogue foi abandonado há muitos anos) desejo-lhe boas leituras! E um regresso a capri para ver a casa de San Michelle!

     

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