Todos os dias são o teu dia, mas dizem que hoje é especial...
03/05/2020 by Paula
POEMA À MÃE
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio
não se demora
e noites rumorosas de
águas matinais.
Por isso, às vezes, as
palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as
rosas brancas
que apertava junto ao
coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda
amo as rosas,
talvez não enchesses as
horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita
coisa;
esqueceste que as minhas
pernas cresceram,
que todo o meu corpo
cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o
menino
que adormeceu nos teus
olhos;
ainda aperto contra o
coração
rosas tão brancas
como as que tens na
moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…
Mas — tu sabes — a noite
é enorme,
e todo o meu corpo
cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos
a beber,
Não me esqueci de nada,
mãe.
Guardo a tua voz dentro
de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as
aves.
Eugénio de Andrade, em
“Primeiros poemas – As mãos e os frutos – Os amantes sem dinheiro”. eBook.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2014.
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