Ontem, depois da divulgação de "Este Obscuro Objecto do Desejo" (aqui), o poeta Tiago Nené entrou em contacto connosco, e teve a simpatia e amabilidade de nos disponibilizar alguns dos poemas do seu livro, para todos podermos conhecer um pouquinho mais da sua obra.
Muito obrigada Tiago Nené.


*
Sinónimos num idioma diferente,
nós que carregamos estes filhos com a linguagem da luz,
que corremos com uma canção de outono,
que varremos o nosso túmulo. Durante anos
conjugámos a meditação com os vícios do quintal, sussurrando
o nome das aves na língua estelar de todos os segredos,
recordámos selectivamente os dias de neve durante a feira,
o avô e os tios e as mãos com cheiro a tamarindo,
as folhas dobradas com uma delicadeza jovem. Porém,
dizíamos que não nos lembrávamos de nada
e qualquer coisa era então um facto e uma lenda,
uma camada de terra por cima de uma nova distância.

Na praça da nossa cidade imaginária
éramos pré-palavras e pré-silêncio,
éramos de manhãzinha e um pouco antes da nossa morte:
um prado verdíssimo, uma génese
que nos ocorria na borda do espírito
ou então na pele de cada criança que nascia de nós.

O nosso sonho era na realidade
ser como aquelas pessoas que se lembram de tudo.


*
É este o ponto primeiro onde nos encontramos,
reapareço na vontade de desaparecer,
um segredo desfila no filme do regresso.
E muito quieta esta imagem que é apenas o seu momento,
uma intimação que afunda nos olhos. Aqui perto,
uma mulher condena
um poema num comboio à sua costura principal,
aquela que vem para saciar a antisede,
aquela que perturba o esquecimento como ilha. Duas mulheres
espremem geometrias misteriosas no plano do fogo,
são tripulação exausta espiando o mar.
E não fosse a morte suspensa nas palavras
e talvez o vazio tivesse desfeito o ar e concretizado o destino,
não fosse o relógio parado e a velhice nas mãos
e talvez a memória andasse para a frente como este silêncio
que se move entre sinais volúveis.
Hoje, caminho pelo rasto do indizível,
por onde este obscuro objecto do desejo
se alinha à vida policopiada,
onde apetece morrer e voltar e ser a consolação da distância
esperando um dia de sol, a incerta ignorância
da voz que escreve.


*
De tanto reentrar no mesmo vazio
e conhecer o vento glacial que me absorve,
mantenho aceso o fogo que a consciência envelhece,
um consolo cruzado entre um fumo de dúvidas.

E esta travessia de séculos prevê uma imagem
quando a inutilidade da noite a alastra
às estrelas sobre o poema não escrito, onde um rosto
assinala em branco o regresso ao mundo.

Talvez me nomeie hoje um momento de euforia
por cada insinuação aos olhos da luz,
e quem sabe se esta superfície grossa
não carrega a ferida nocturna que me afasta
de tudo o que é fácil e perecível.

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