"Carta à mulher do meu futuro", Péter Gárdos (Opinião)
07/05/2016 by Vasco
- Quantas delas te responderam?
- Dezoito.
- E agora vais começar a corresponder-te com dezoito mulheres?
O Pai apontou para o bolso, onde tinha escondido a carta.
- Ela é a verdadeira.
- Como sabes?
- Simplesmente sei.
Em Julho de 1945, depois de sobreviver ao campo de concentração de Bergen-Belsen, Miklós, um jovem húngaro de vinte e cinco anos, é enviado para um campo de refugiados na Suécia. Pele e osso, desdentado, doente, o médico dá-lhe poucos meses de vida. Mas morrer depois de sobreviver a uma guerra não está nos planos de Miklós.
Ele não se sente sozinho. Sabe que que há 117 mulheres da sua terra a viver em campos de refugiados na Suécia. Ignorando a sentença de morte da febre que o atormenta todas as manhãs, envia uma carta a cada uma delas. Alguma haverá de sucumbir à sua veia poética e sedutora caligrafia.
A centenas de quilómetros, Lili responde. Assim começa uma história de amor redentora e inesquecível entre dois sobreviventes que eram também sonhadores. Baseada na história real dos pais do autor e narrada a partir das cartas trocadas entre os dois, o romance de Péter Gárdos relembra-nos que o amor é uma força de vida, capaz de vencer a própria morte.
Prometedor. Resiliente. Forte.
"Carta à mulher do meu futuro" é um título que, à partida, pode soar um pouco estranho, mas que, na verdade, define na perfeição toda a obra. É, assim, o melhor título que alguma vez podia ter sido escolhido. Aliás, o primeiro título, concebido pelo autor, é "Febre ao amanhecer" - que também dá origem ao filme realizado por Gárdos -, a mesma com que o personagem principal acorda todas as manhãs, fruto de uma tuberculose que o persegue desde os tempos em que foi capturado pelos soldados da alemanha nazi - escrevo propositadamente o nome do país com letra minúscula porque foi precisamente isso o que ele representou durante aqueles anos sombrios, a pequenez.
O livro incide sobre alguém - o pai do autor por sinal - que espera desesperadamente encontrar uma mulher que possa amar. Acredito plenamente neste sentimento, quando não há nada no mundo onde nos possamos agarrar, quando tudo o que havíamos construído se colapsou. Não encontro em mim palavras para descrever essa situação. Curiosamente a fé inicial do pai é inversamente proporcional à capacidade receptiva da mãe. Mas como o Universo é um elemento de profunda sintonia, as coisas lá acabam por se equiparar.
Ao longo da obra é notória a admiração do autor pela capacidade de luta e de resistência do pai, algo que se transpõe claramente para nós, leitores. Penso até que, nesta narrativa, a vontade acaba por ser mais nobre do que o próprio amor. Porque não se trata de romantismo puro nem de atracção física. Trata-se isso sim de esperança, esperança de que possa existir algo bom por detrás de um mundo insano.
Devo admitir que houve duas passagens que me surpreenderam, ambas pela positiva. Adorei a abordagem do autor ao silêncio feito pelos seus pais na altura em que foram sujeitos a cenas atrozes - tais que se revelam indescritíveis - e ao facto de haver uma sensação contrária ao que tenho lido nos livros deste género, onde a mãe é assolada pelo desejo de não ser aquilo que é: judia.
Um bom livro, sim senhor!