O convidado de hoje é João Pinto Coelho, o autor do magnífico livro "Perguntem a Sarah Gross" (se não lerem têm de o ler! Aconselho sem reservas!). O João Pinto, nasceu em de terras de sua majestade em 1967, mas não ficou por lá, apesar de ter vivido algum tempo nos Estados Unidos da América, é em Lisboa que passa a maior parte do seu tempo! Quis a vida que Auschwitz estivesse no seu caminho quando desenvolveu projectos que o levaram à Polónia e aos campos de concentração. Podem ler mais, sobre o autor aqui


Título: Se Isto é um Homem
Autor: Primo Levi
Tradução: Simonetta Neto
Editora: Dom Quixote, 2010

Levi ensinou-me que as histórias do Holocausto terminam sempre com perguntas. 
E, sim, é bárbaro escrever Poesia depois de Auschwitz, mas vejam: é possível! Costumo pegar neste excerto e dizer ao mundo o quanto gostava de ter sido eu a escrevê-lo:
E veio a noite, e foi uma noite tal, que se sabe que olhos humanos não deveriam assistir e sobreviver. Todos sentiram isso: nenhum dos guardas, quer italianos, quer alemães, teve a coragem de vir ver que coisas fazem os homens quando sabem que vão morrer. Cada um se despediu da vida da maneira que melhor sabia. Alguns rezaram, outros beberam além da conta, outros inebriaram-se numa nefasta e última paixão. Mas as mães mantiveram-se acordadas e prepararam, com cuidado amoroso, o alimento para a viagem, lavaram os seus meninos e prepararam as bagagens; ao raiar do dia, o arame farpado estava cheio de roupas de criança estendidas ao vento, a secar; e não esqueceram as fraldas, e os brinquedos, e os travesseiros, e centenas de outras pequenas coisas das quais as crianças sempre necessitam. Não fariam também vocês a mesma coisa? Se fossem morrer amanhã com os vossos filhos, não lhes dariam hoje de comer?” 

Auschwitz, ele mesmo um lancinante grito acusatório, silencia-nos. O paradoxo está no léxico que ardeu com os corpos, perdido com eles pelas torres crematórias do lager. Levi faz o impossível e retorna ao absurdo com lucidez. Em Se Isto é Um Homem, as palavras, substituídas pela redundância da dúvida, significam sempre outra coisa, porque o inverno e a fome são “palavras inventadas por homens livres”, homens que não conheceram Auschwitz. Levi encara o perpetrador e a vítima, o Muselmann, a zona cinzenta de cada homem ou os vestígios que dele restam. Esse exercício é uma agressão que nos convoca em cada página para o lugar da iniquidade, impondo-nos uma introspeção em cada uma das suas frases.
Porque cada homem é morada do seu próprio desconhecido.

João Pinto Coelho

1 comentários:

    On 31 março, 2016 C. disse...

    Por acaso tenho esse livro na minha to-read list das minhas Crónicas de uma Leitora Compulsiva e depois dessa review, parece que vale mesmo a pena :)

     

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