Conto Inédito - Perfeitos Estranhos (Parte I)
28/07/2014 by Vasco
Depois
de a Paula me ter implorado que lançasse um conto inédito da minha autoria aqui
no Viajar, eu acedi.
Trata-se de um conto dividido em cinco
partes, pelo que cada uma será lançada nos dias úteis desta semana.
Este foi o único conto que escrevi sobre
algo parecido com o famoso tema “amor”. Foi das últimas que criei, já lá vai um
ano e meio.
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PERFEITOS ESTRANHOS
(Parte I)
ELE
Eu sei que pode parecer estranho,
mas sou assim.
Recordo-me de quando era pequeno.
Sentia-me diferente nessa altura, ainda mais do que me sinto hoje, agora que já
me habituei a uma excentricidade tão vincada que a oculto de tudo e todos,
mesmo de quem me viu nascer, gente que sei tudo que faria para me proteger.
Porém, temo defraudá-los, a eles, pelo simples facto de ter sido concebido a
partir dos seus corpos, dos seus genes e dos seus sentimentos.
Hoje em dia assusto-me assim que me
vejo ao espelho, assim como desdenho a minha voz quando a ouço numa gravação.
Também costumo arrepender-me de todas as minhas decisões que não tenham sido
primárias e envergonhar-me dos meus próprios gostos. Sei o que sentem os miúdos
solitários que se escondem nas sombras que os recreios das suas escolas oferecem
e os que carregam consigo uma qualquer deficiência física. Do mesmo modo,
imagino como é a noite de quem não consegue dormir, apesar de o querer, ou de
quem rouba por necessidade, não por prazer.
Sou assim.
Consigo, nos tempos que correm,
lidar com isso e com o meu próprio fantasma. Basta para o efeito isolar-me de
todos, fingir que não sou eu, longe de olhares alheios, afastado do choro que
mal consigo suster. É complicado carregar ao longo dos anos todas as lágrimas
que se foram acumulando, dia após dia, instante após instante. No início foi um
pouco doloroso ser alguém que os outros viam, não alguém que eu teimava não
ser. Todavia, com imensa vontade e determinação, tudo pode acontecer, excepto
viver quando não se quer ou morrer quando isso é tudo o que desejamos.
Agora trabalho, finjo que rio,
ingiro metade daquilo que meto no prato, vivo apenas o que tenho de viver,
quase como se fosse obrigado. Aparento ser normal.
Mas nem sempre foi assim. Não.
Complicado era nos tempos em que os
bonecos não deviam passar disso mesmo e as correrias pelos jardins, repletos de
cheiros agradáveis, e pelos parques, cheios de alegria, supostamente se
revelavam momentos puros. Para mim, porém, nunca o foram. Não sei a verdadeira
razão, mas nunca chegaram a ser. A minha mente nunca foi virgem e nem por uma
única vez as coisas foram porque tiveram de ser. Na minha minúscula cabeça tudo
tinha de possuir uma razão. E isso foi o princípio do fim.
Fui-me amaldiçoando desde que me
recordo de mim mesmo. Porque não era feliz, não rindo por dentro. Porque não
brincava até à exaustão, nem entendendo a razão pela qual os meus pares o
faziam. Porque não sentia florescer dentro de mim aquilo que os outros
descreviam que acontecia com eles.
Ainda era pequeno quando, de noite,
sentia conforto ao lidar com o mal. Não o mal ao querer o sofrimento daqueles
que me rodeavam, mas sim o mal ao desejar a minha própria dor.
Estranho, bem sei. No entanto
enquanto escutava as meninas defenderam a salvação de animais cruelmente
abandonados nas ruas e os meninos ansiarem levantar estádios com os seus golos,
eu apenas desejava sentir um desgosto, ou todos os que a vida me pudesse
brindar. E foi nessa altura que rezei a alguma entidade suprema que me desse
uma existência longa, apenas para que a mágoa me visitasse com força, para, aí
sim, sentir a alegria que outros sentiam.
Depois comecei a imaginar que
tragédias se abatiam sobre o meu ser, que o tecto desabava sobre todos, e que os levava a eles, mas não a mim,
para que pudesse chorar as suas mortes e sentir as suas ausências. Fui pensando
também que um grave acidente me tinha lesionado para a eternidade, na qual
olhares pesarosos se dirigiam na minha direcção, e eu sofria mais com eles do
que com as minhas próprias limitações. Tentei sentir, noite após noite, o que
era estar encarcerado, preso e entalado, longe de tudo e de todos e ser
resgatado apenas quando a ilusão se havia ido.
Com os pensamentos vieram os actos.
A dor mental passou a não ser suficiente para alimentar o meu instinto e comecei
a cortar-me. Primeiro com facas, mas logo percebi que pequenas lâminas afiadas
me satisfaziam de outra forma, pois a dor era mais aguda e o corte repetível
por uma infinidade de vezes nos mesmos locais.
Hoje guardo essas marcas como se
sempre tivessem sido minhas, e escondo-as por baixo das roupas que visto. São a
história da minha existência. Como outros guardam álbuns e troféus de locais
que pisaram, eu trago comigo, no meu corpo, a minha verdadeira essência.
Porque sou assim? Não sei. Apenas
sou e desconfio que jamais deixarei de o ser.
E foi então que a vi.
Nela emanava uma luz que parecia ser
própria como aquela que se liberta do sol. Deslizava pela calçada e o seu belo
cabelo parecia voar em seu redor, sem nunca partir, onde, senti estranhamente
na altura, eu desejava estar. Pela primeira vez desde que haviam desistido de
mim, alguém me encarou com um olhar
penetrante. E ela sorriu. E
quando virou a esquina, estava eu especado e boquiaberto, voltou a olhar na
minha direcção, enchendo-me com um calor que eu nunca havia sentido.
Nunca mais a vi, mas teimo em
procurá-la desde então. Não há dia em que não o faça. Espero no entanto que
quando isso acontecer não seja tarde demais e eu possa apagar todo o golpe que
dilacerou a minha carne, assim como a alma, durante todos estes anos.
Sempre que saía, em busca da sua
figura, algo em mim me fazia levitar, como se uma força invisível e
inexplicável me arrastasse contra a minha vontade. Era sufocante, por vezes,
mas a esperança tomava controlo sobre o meu corpo de uma forma como nunca nada
o havia feito. Os dias eram, portanto, passados com quase-sorrisos e com o
coração bem apertado, prestes a abrir-se quando os meus olhos voltassem a
pousar nos seus. Eu vivia assim, nesse permanente estado de ansiedade, de um
modo em que cada batida cardíaca acabava por se revelar em mim como um pequeno
terramoto, a cada segundo, abalando-me violentamente, sem nunca me vergar
porém. E na minha cabeça o futuro sombrio passava a ser como o das outras
pessoas, luminoso e despreocupado.
A pior parte era quando a noite
chegava e com ela a escuridão. Os meus fantasmas regressavam, e eu via o que
sempre quis ver até então, mas que agora me magoava para lá do que era
suportável. A esperança ia sendo lentamente substituída por uma espécie de
resignação. Durante esse período de tempo que parecia interminável, o medo
passou a tomar conta de mim, dominando-me por completo. Passei a chorar e a
tremer de cada vez que o rosto que passei a amar vagueava pela minha mente.
Logo percebi que um dia eu chegaria ao fim da linha. Só não
sabia era para que lado eu haveria de tombar quando assim fosse. Tudo se
definiria se o fizesse durante o dia ou durante noite, se o fim chegaria antes
ou depois de voltar a ver aquilo que me mudara para sempre.
***
Que grande ideia Paula :-)
Só vou ler quando estiverem todas as partes publicadas, mas fico ansiosamente á espera :-)
Beijokas para os 2 ;-)
Helga
:) Beijinhos, Helga.
À força de procurar encontrei,finalmente,a 1ª parte.
O desafio da Paula foi um óptimo incentivo para um óptimo conto.Está excelente como já referi após a leitura da 2ª parte.
Imaginação e aquele não sei quê que torna a tua escrita inconfundível e cheia de suepense.
Boa leitura !