PERFEITOS ESTRANHOS

(Parte III)

ELES



Ele dava pelo nome de Adegesto, como ninguém se chamava. Ela Maria, como muitas tinham como primeiro nome.
Durante dias e noites procuraram-se mutuamente, sem que nunca se tivessem cruzado sequer. Um raio de sol ofuscou a visão de um numa tarde solarenga, mesmo estando o outro do lado oposto da rua, a mirar num sentido contrário ao que devia. Um semáforo no caminho de Maria atrasou-a dez segundos na manhã seguinte, impedindo-a de chocar contra Adegesto. Depois foi uma tempestade, um atraso de um autocarro, um pedido de um vizinho, um café inesperadamente entornado, um troco tardiamente dado numa loja insignificante, um passo, um gesto, uma indecisão, uma decisão.
Eram almas atormentadas que se haviam cruzado uma vez, sem que parecesse, contudo, que tivessem o direito de se voltar a reunir.
Algumas Primaveras e Outonos foram passando sem que ambos desistissem. Nem o frio ríspido do Inverno, trazendo gelo e neve sem cessar, nem o calor tórrido do Verão, juntamente com a sua sede e as visões turvas que provocavam, alguma vez impediram que qualquer um deles saísse em busca do outro. A idade foi pesando e as roupas desgastando.
Rapidamente Adegesto percebeu que a sua vida, a qual nunca chegara verdadeiramente a começar, não seria mais do que aquilo que sempre quis que fosse: eterno sofrimento. Cada dia que passava revelava-se mais penoso do que o anterior, porque a esperança não chegava a desaparecer enquanto procurava a mulher desconhecida, mas a dor incidia um pouco mais de cada vez que a lua seguinte o visitava. E de repente, um dia, olhou-se ao espelho e mal se reconheceu. Estava magro, tinha o cabelo comprido, os cantos da boca haviam descaído e a sua pele perdera alguma da pouca cor que até então tivera. Nesse instante entrou em pânico e uma súbita vontade de desaparecer apoderou-se de si, pois se ele mal se reconhecia, como poderia a mulher que pretendia resgatar fazê-lo?
Maria, por sua vez, tinha o emprego mais tremido do que nunca, da mesma forma que o seu pensamento. E, sempre que podia, vasculhava por cada recanto da cidade, sempre em vão. Temia perder-se por entre as suas buscas sem que nunca mais se voltasse a encontrar.
Certo dia, escuro e estranho, chegou a casa exausta. Sentia-se frustrada e culpou-se pelo facto de ainda não ter encontrado o homem que procurara incessantemente. Num gesto irreflectido, bateu com a porta de casa e saiu, sem saber para onde ir. Simplesmente caminhou, sem rumo definido. Não tinha a consciência de onde estava quando decidiu que necessitava de ver mais além, porque certamente algo lhe fugira da memória, levando-a a procurar em locais que não devia, enquanto ignorava aqueles onde possivelmente o encontraria.
Pelas ruas da cidade antiga não passava ninguém. Só se escutavam cães que se queixavam pontualmente de algo imperceptível. O nevoeiro cerrado apenas deixava perceber um par de metros diante de cada passo. Os próprios tacões de Maria ressoavam como um enorme relógio que se faz sentir sempre que um segundo ultrapassa o anterior. O paralelo estava gasto e escorregadio e, não obstante a perigosa inclinação, prosseguiu por entre as casas fechadas, de paredes que havia muito tempo tinham sido brancas. Ao alcançar um passeio plano, deixando as habitações para trás, Maria avistou vários focos de luz. Aproximou-se e logo entendeu estar numa ponte de ferro, tão alta que a existência do rio que passava por baixo dela não seria uma certeza, não fossem os seus ouvidos a comprová-lo.
As águas corriam furiosamente e Maria continuou a andar até avistar um vulto negro, plantado no tabuleiro da estrutura. Noutra altura teria hesitado. Porém o medo não era algo que existisse dentro dela naquele momento. Caminhou, pé ante pé, numa passada segura, embora sem destino certo. O vulto tomou então a forma de um corpo rigidamente estagnado e voltado para o rio. As mãos estavam pousadas no parapeito que lhe dava pelos ombros e a cabeça mostrava-se inclinada para baixo.
Maria deu mais alguns passos e percebeu que a sombra se tratava afinal de um homem vestido de preto, cujo rosto se encontrava escondido por detrás da gola gasta e levantada do casaco comprido. Apesar de não captar qualquer traço do indivíduo, um brilho, ainda que ténue, despertou-lhe a atenção. Já o tinha visto antes, apenas por uma ocasião, ainda que com uma intensidade infinitamente superior.
Então Maria parou junto ao parapeito, a uma pequena distância do desconhecido, mas suficiente para escutar o seu arfar. Pôs-se em bicos de pés e encarou o rio. Nada viu para além do que se habituara a observar ao longo do tempo: vazio e escuridão.
Os dois ficaram estáticos por alguns segundos. Ela com a respiração mais acelerada e ele absorto como se continuasse só. Até que Maria falou.
“Finalmente encontrei-te.”
“Também me procuraste?”
“Não houve dia em que não o tivesse feito.”
“Da mesma forma que eu.”
“Porque não nos encontrámos mais cedo então?”
“Se calhar não estava escrito nas estrelas que tivéssemos de nos voltar a cruzar.”
“Mas estamos aqui.”
“Pois.”
“Ou talvez tenha sido um verdadeiro teste à nossa perseverança.”
“Como te chamas?”
“Maria. E tu?”
“Maria, um nome comum, aquilo que nunca fui. Chamo-me Adegesto.”
“Adegesto, um nome diferente, aquilo que nunca consegui ser.”
Os dois calaram-se como que sentindo o momento pelo qual haviam ansiado durante muito tempo.
“O que estás aqui a fazer, Adegesto?”
“Estou a pensar em atirar-me desta ponte.”
“Mas não tens asas. Morrerias.”
“A ideia é essa.”
“Se tu fores eu vou contigo.”
Ele meditou, pesando a afirmação que ela lhe havia feito. Maria aproximou-se e pousou a sua mão em cima da dele. Ambos se arrepiaram ainda mais do que quando tinham sentido pela primeira vez o vento cortante que soprava bem forte naquela ponte desprotegida.
“Agora que te encontrei, Adegesto, não te deixarei partir. Tenho a noção que percebeste que te amei quando nos cruzámos naquele dia. Sei que sentes o mesmo.”
“Como?”
“Simplesmente sei. Tu não sabes?”
“Sim, sei.”
“Então, não mais te largarei até que o meu coração deixe de bater.”
“Tu não compreendes. Eu gosto de sofrer. Não posso viver um amor no qual me alimentarei da dor que ele me causar. Esta é a minha sina, não consigo ser diferente.”
“Não faz mal. Pois eu sempre quis ser o oposto de tudo o que jamais existiu. Viveremos um amor só nosso, em nada igual ao que os restantes vivem. Será apenas meu e teu.”
“Não, Maria. Não te posso desviar da perfeição que és.”
“Óptimo. Perfeita foi tudo o que nunca quis ser. E, de qualquer forma, eu vou fazer-te sofrer.”
“Como?”
“Amando-te e permitindo que me ames. Julgo que não haja maior sofrimento do que temer a perda de alguém que se ame.”
“Talvez seja verdade.”
“Pois daqui em diante serei apenas tua.”
“Mas o que te posso dar em troca?”
“A diferença. És aquilo com que sempre sonhei, Adegesto.”
“Porquê?”
“Porque és diferente de todos.”
“Como sabes?”
“Como sabes que me queres?”
“Não sei, Maria. Apenas sei.”
“Exacto. A tua resposta é a minha.”
Adegesto voltou a palma da mão para cima pela primeira vez e apertou a de Maria com suavidade e alguma firmeza.
“O que faremos, Maria?”.
“O que os outros não fazem.”
“Do que viveremos?”
“Do que os outros não vivem.”
Ele suspirou. Não estava tão certo quanto Maria de que a relação resultaria. O sofrimento apoderara-se em demasia de si mesmo para poder encarar algo que não a dor, a morte ou a depressão.
“Achas que isso importa realmente, Adegesto?”
“Como assim?”
“Não importa. Se quiseres nadar naquela água atiremo-nos já desta ponte e viveremos dela eternamente. Se quiseres pisar a terra fixemo-nos nela onde tu quiseres e certamente floresceremos. Se quiseres voar por este ar pestilento basta que demos as mãos e fechemos os olhos. Não importa que o nosso amor dure um segundo ou cem anos, pois ele é real.”
“Eu tenho o meu lado negro.”
“Todos temos, Adegesto.”
“Gosto de me cortar.”
“Eu corto-te por ti.”
“Também gostas?”
“Até agora nunca experimentei, mas sempre quis ser diferente. Já to disse.”
“Não te quero forçar a nada.”
“Só não quero que me forces a andar atrás de ti. Não agora que te encontrei.”
“Nunca disse amo-te a alguém.”
“Não necessitas pois toda a gente o faz. Para além do mais, os teus olhos dizem-no por ti, Adegesto.”
“E se um dia o fizer? Causar-te-á algum desconforto?”
“Não.”
“Mas é o que todos fazem.”
“Mas contigo é diferente.”
Os dois encararam-se sorrindo. Pareciam ter alcançado uma espécie de acordo sem nunca o terem selado oficialmente.
“És estranha, Maria.”
“Óptimo, sempre quis sê-lo.”


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