Conto Inédito - Perfeitos Estranhos (Parte III)
30/07/2014 by Vasco
PERFEITOS ESTRANHOS
(Parte III)
ELES
Ele dava pelo nome de Adegesto, como
ninguém se chamava. Ela Maria, como muitas tinham como primeiro
nome.
Durante dias e noites procuraram-se
mutuamente, sem que nunca se tivessem cruzado sequer. Um raio de sol
ofuscou a visão de um numa tarde solarenga, mesmo estando o outro do
lado oposto da rua, a mirar num sentido contrário ao que devia. Um
semáforo no caminho de Maria atrasou-a dez segundos na manhã
seguinte, impedindo-a de chocar contra Adegesto. Depois foi uma
tempestade, um atraso de um autocarro, um pedido de um vizinho, um
café inesperadamente entornado, um troco tardiamente dado numa loja
insignificante, um passo, um gesto, uma indecisão, uma decisão.
Eram almas atormentadas que se haviam
cruzado uma vez, sem que parecesse, contudo, que tivessem o direito
de se voltar a reunir.
Algumas Primaveras e Outonos foram
passando sem que ambos desistissem. Nem o frio ríspido do Inverno,
trazendo gelo e neve sem cessar, nem o calor tórrido do Verão,
juntamente com a sua sede e as visões turvas que provocavam, alguma
vez impediram que qualquer um deles saísse em busca do outro. A
idade foi pesando e as roupas desgastando.
Rapidamente Adegesto percebeu que a sua
vida, a qual nunca chegara verdadeiramente a começar, não seria
mais do que aquilo que sempre quis que fosse: eterno sofrimento. Cada
dia que passava revelava-se mais penoso do que o anterior, porque a
esperança não chegava a desaparecer enquanto procurava a mulher
desconhecida, mas a dor incidia um pouco mais de cada vez que a lua
seguinte o visitava. E de repente, um dia, olhou-se ao espelho e mal
se reconheceu. Estava magro, tinha o cabelo comprido, os cantos da
boca haviam descaído e a sua pele perdera alguma da pouca cor que
até então tivera. Nesse instante entrou em pânico e uma súbita
vontade de desaparecer apoderou-se de si, pois se ele mal se
reconhecia, como poderia a mulher que pretendia resgatar fazê-lo?
Maria, por sua vez, tinha o emprego
mais tremido do que nunca, da mesma forma que o seu pensamento. E,
sempre que podia, vasculhava por cada recanto da cidade, sempre em
vão. Temia perder-se por entre as suas buscas sem que nunca mais se
voltasse a encontrar.
Certo dia, escuro e estranho, chegou a
casa exausta. Sentia-se frustrada e culpou-se pelo facto de ainda não
ter encontrado o homem que procurara incessantemente. Num gesto
irreflectido, bateu com a porta de casa e saiu, sem saber para onde
ir. Simplesmente caminhou, sem rumo definido. Não tinha a
consciência de onde estava quando decidiu que necessitava de ver
mais além, porque certamente algo lhe fugira da memória, levando-a
a procurar em locais que não devia, enquanto ignorava aqueles onde
possivelmente o encontraria.
Pelas ruas da cidade antiga não
passava ninguém. Só se escutavam cães que se queixavam
pontualmente de algo imperceptível. O nevoeiro cerrado apenas
deixava perceber um par de metros diante de cada passo. Os próprios
tacões de Maria ressoavam como um enorme relógio que se faz sentir
sempre que um segundo ultrapassa o anterior. O paralelo estava gasto
e escorregadio e, não obstante a perigosa inclinação, prosseguiu
por entre as casas fechadas, de paredes que havia muito tempo tinham
sido brancas. Ao alcançar um passeio plano, deixando as habitações
para trás, Maria avistou vários focos de luz. Aproximou-se e logo
entendeu estar numa ponte de ferro, tão alta que a existência do
rio que passava por baixo dela não seria uma certeza, não fossem os
seus ouvidos a comprová-lo.
As águas corriam furiosamente e Maria
continuou a andar até avistar um vulto negro, plantado no tabuleiro
da estrutura. Noutra altura teria hesitado. Porém o medo não era
algo que existisse dentro dela naquele momento. Caminhou, pé ante
pé, numa passada segura, embora sem destino certo. O vulto tomou
então a forma de um corpo rigidamente estagnado e voltado para o
rio. As mãos estavam pousadas no parapeito que lhe dava pelos ombros
e a cabeça mostrava-se inclinada para baixo.
Maria deu mais alguns passos e percebeu
que a sombra se tratava afinal de um homem vestido de preto, cujo rosto se
encontrava escondido por detrás da gola gasta e levantada do casaco
comprido. Apesar de não captar qualquer traço do indivíduo, um
brilho, ainda que ténue, despertou-lhe a atenção. Já o tinha
visto antes, apenas por uma ocasião, ainda que com uma intensidade
infinitamente superior.
Então Maria parou junto ao parapeito,
a uma pequena distância do desconhecido, mas suficiente para escutar
o seu arfar. Pôs-se em bicos de pés e encarou o rio. Nada viu para
além do que se habituara a observar ao longo do tempo: vazio e
escuridão.
Os dois ficaram estáticos por alguns
segundos. Ela com a respiração mais acelerada e ele absorto como se
continuasse só. Até que Maria falou.
“Finalmente encontrei-te.”
“Também me procuraste?”
“Não houve dia em que não o tivesse
feito.”
“Da mesma forma que eu.”
“Porque não nos encontrámos mais
cedo então?”
“Se calhar não estava escrito nas
estrelas que tivéssemos de nos voltar a cruzar.”
“Mas estamos aqui.”
“Pois.”
“Ou talvez tenha sido um verdadeiro
teste à nossa perseverança.”
“Como te chamas?”
“Maria. E tu?”
“Maria, um nome comum, aquilo que
nunca fui. Chamo-me Adegesto.”
“Adegesto, um nome diferente, aquilo
que nunca consegui ser.”
Os dois calaram-se como que sentindo o
momento pelo qual haviam ansiado durante muito tempo.
“O que estás aqui a fazer,
Adegesto?”
“Estou a pensar em atirar-me desta
ponte.”
“Mas não tens asas. Morrerias.”
“A ideia é essa.”
“Se tu fores eu vou contigo.”
Ele meditou, pesando a afirmação que
ela lhe havia feito. Maria aproximou-se e pousou a sua mão em cima
da dele. Ambos se arrepiaram ainda mais do que quando tinham sentido
pela primeira vez o vento cortante que soprava bem forte naquela
ponte desprotegida.
“Agora que te encontrei, Adegesto,
não te deixarei partir. Tenho a noção que percebeste que te amei
quando nos cruzámos naquele dia. Sei que sentes o mesmo.”
“Como?”
“Simplesmente sei. Tu não sabes?”
“Sim, sei.”
“Então, não mais te largarei até
que o meu coração deixe de bater.”
“Tu não compreendes. Eu gosto de
sofrer. Não posso viver um amor no qual me alimentarei da dor que
ele me causar. Esta é a minha sina, não consigo ser diferente.”
“Não faz mal. Pois eu sempre quis
ser o oposto de tudo o que jamais existiu. Viveremos um amor só
nosso, em nada igual ao que os restantes vivem. Será apenas meu e
teu.”
“Não, Maria. Não te posso desviar
da perfeição que és.”
“Óptimo. Perfeita foi tudo o que
nunca quis ser. E, de qualquer forma, eu vou fazer-te sofrer.”
“Como?”
“Amando-te e permitindo que me ames.
Julgo que não haja maior sofrimento do que temer a perda de alguém
que se ame.”
“Talvez seja verdade.”
“Pois daqui em diante serei apenas
tua.”
“Mas o que te posso dar em troca?”
“A diferença. És aquilo com que
sempre sonhei, Adegesto.”
“Porquê?”
“Porque és diferente de todos.”
“Como sabes?”
“Como sabes que me queres?”
“Não sei, Maria. Apenas sei.”
“Exacto. A tua resposta é a minha.”
Adegesto voltou a palma da mão para
cima pela primeira vez e apertou a de Maria com suavidade e alguma
firmeza.
“O que faremos, Maria?”.
“O que os outros não fazem.”
“Do que viveremos?”
“Do que os outros não vivem.”
Ele suspirou. Não estava tão certo
quanto Maria de que a relação resultaria. O sofrimento apoderara-se
em demasia de si mesmo para poder encarar algo que não a dor, a
morte ou a depressão.
“Achas que isso importa realmente,
Adegesto?”
“Como assim?”
“Não importa. Se quiseres nadar
naquela água atiremo-nos já desta ponte e viveremos dela
eternamente. Se quiseres pisar a terra fixemo-nos nela onde tu
quiseres e certamente floresceremos. Se quiseres voar por este ar
pestilento basta que demos as mãos e fechemos os olhos. Não importa
que o nosso amor dure um segundo ou cem anos, pois ele é real.”
“Eu tenho o meu lado negro.”
“Todos temos, Adegesto.”
“Gosto de me cortar.”
“Eu corto-te por ti.”
“Também gostas?”
“Até agora nunca experimentei, mas
sempre quis ser diferente. Já to disse.”
“Não te quero forçar a nada.”
“Só não quero que me forces a andar
atrás de ti. Não agora que te encontrei.”
“Nunca disse amo-te a alguém.”
“Não necessitas pois toda a gente o
faz. Para além do mais, os teus olhos dizem-no por ti, Adegesto.”
“E se um dia o fizer? Causar-te-á
algum desconforto?”
“Não.”
“Mas é o que todos fazem.”
“Mas contigo é diferente.”
Os dois encararam-se sorrindo. Pareciam
ter alcançado uma espécie de acordo sem nunca o terem selado
oficialmente.
“És estranha, Maria.”
“Óptimo, sempre quis sê-lo.”
***