PERFEITOS ESTRANHOS

(Parte II)

ELA



Sempre me senti estranha, vivendo numa cidade ainda mais estranha e permanentemente rodeada de gente com a qual não me identificava. Todavia não houve um único dia no qual não me tenha sentido normal.
Durante toda a minha vida gostei das mesmas músicas que a maioria apreciava, simpatizei com as pessoas de quem todos gostavam, usei o mesmo tom cor-de-rosa que as miúdas da minha idade vestiam e brinquei alegremente os jogos com os quais todos se divertiam.
Fui e serei sempre uma ovelha num rebanho. Rebanho esse preenchido por elementos todos eles da mesma cor, pois não havia um único que se revelasse negro como a célebre fábula que me habituei a escutar em criança. Não sei bem a razão, mas estranhava esse mundo no qual vivia, por sermos todos iguais, demasiado normais.
Por isso, ao sentir-me dessa maneira, fiz coisas que não quis. Roubei porque ninguém o fazia. Praguejei bem alto e por toda a parte, pois apenas ouvia palavras doces e melodias calmas. Sujei o que sempre fora imaculado. Reagi quando me deveria calar.
Gritei. Amaldiçoei. Desesperei.
E tudo porque me sentia normal.
Ser como os outros num local perfeito não é fácil. Não raciocinamos com identidade, não vivemos enquanto seres independentes. Isso sempre me deixou à beira do abismo, bem próxima de um estado de loucura que, transposta a barreira, o retorno seria inviável. Talvez o melhor para mim passasse pelo internamento num hospício, não fosse o facto de, até nesse local repleto de gente supostamente louca, tudo ser normal como em qualquer rua, lar ou espaço social.
Enquanto cresci este sentimento foi-se agudizando, quase destruindo cada célula do meu ser. Teimei ser diferente, mas nada conquistei. Esforcei-me por provocar olhares de ódio, conseguindo apenas miseráveis expressões de simpatia.
Tinha 15 anos quando rapei o cabelo, como os rapazes faziam, e mesmo assim eram poucos. Toda a gente riu, gabando a minha ousadia e o meu jeito rebelde. Fiquei quase desesperada, pois tornei-me ainda mais popular do que era, ainda mais normal no seio da comunidade.
Depois passei a vestir-me de preto e a maquilhar-me como nos filmes de vampiros. E a desilusão abateu-se sobre mim novamente ao reparar que metade dos meus amigos imitou a minha nova forma de estar, trazendo para a cidade uma moda que parecia que vinha para ficar.
Quando atingi a maioridade grande parte de mim mudou. Todas as hipóteses de deixar uma marca no mundo pareciam ter esgotado. Tudo tinha feito para ser vista como alguém que eu não era e nada parecia ter resultado. Foi então que pintei o cabelo, de cor clara como as bonecas que sempre estiveram em voga, voltei a vestir as cores femininas como todas as outras raparigas e sorri como todas sorriam quando um elogio me era dirigido.
Tornei-me vulgar como sempre quiseram que eu fosse. Dormi com os homens que queriam que com eles me deitasse, aceitei bebidas de quem me queria ver alterada, fui dizendo as piadas que todos esperavam ouvir e fiz todas as coisas indicadas que os momentos exigiam que eu fizesse. Nada recusei, tudo aceitei.
Esforcei-me por ter um bom emprego, porque isso faria de mim alguém normal.
Enquanto isso, cresci a vaguear pelas ruas, cinzenta como todos os que me rodeavam, esquecendo-me aos poucos de tudo o que sempre desejei: ser outra que não toda a gente. Os meus passos não eram rápidos nem lentos, eram apenas. Caminhava da mesma forma que todos o faziam, de olhar focado num ponto fixo no horizonte, mas acerca do qual eu nada sabia, pois não era onde verdadeiramente ansiava chegar. Mas de que valia pensar em algo que nunca chegaria a alcançar?
Vivi então, sorridente e airosa, fresca e agitada, até que o vi.
Ele estava especado a focar-me, como se eu fosse aquilo que sempre quis ser: diferente. Ele era colorido no meio de uma civilização pintada em tons neutros. Pensei que falasse comigo e, por um instante, ponderei parar e abordá-lo de alguma forma, dizendo o que pensava que sentia. Contudo ele manteve-se quieto, como se estivesse hipnotizado, e eu prossegui, temerosa e cobarde. Afinal só ele era colorido e devia ver-me, a mim, da mesma cor que toda gente, pois eu era, e sou, um deles; Afinal, movo-me com o rebanho, seguindo de um modo humilhante a sua orientação, sempre incapaz de contrariar a tendência.
Durante dias bloqueei e temi destacar-me da multidão. Pedi férias e depois baixa, e não saí de casa. Os dias tornaram-se um par de meses vividos numa angústia enorme, num medo atroz, receando tornar-me no que ele era e naquilo que eu nunca cheguei a ser. Mas não houve um único momento em que não tivesse sonhado em agarrar a mão daquele homem que aparentava ter a minha idade e nunca mais a largar. E partir. Correr sem parar, para junto dele, para longe de tudo.
Então, numa noite fria, ganhei coragem e decidi deixar tudo o que até então conhecia. O seu olhar continuava preso em mim, mesmo não estando presente, como se implorasse que o procurasse, a ele que nem o conhecia.


***

1 comentários:

    Excelente!
    Conto bem construído em redor de uma personagem polémica,controversa,mas surpreendente.
    A nível linguístico o uso da escrita característica do Vasco,cheia de recursos expressivos (adjectivação,antíteses,metáforas),dá-lhe uma carga emocional muito forte.
    Espero ansiosamente a parte III...

     

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