Conto Inédito - Perfeitos Estranhos (Parte II)
29/07/2014 by Vasco
PERFEITOS ESTRANHOS
(Parte II)
ELA
Sempre
me senti estranha, vivendo numa cidade ainda mais estranha e
permanentemente rodeada de gente com a qual não me identificava.
Todavia não houve um único dia no qual não me tenha sentido
normal.
Durante toda a minha vida gostei das
mesmas músicas que a maioria apreciava, simpatizei com as pessoas de
quem todos gostavam, usei o mesmo tom cor-de-rosa que as miúdas da
minha idade vestiam e brinquei alegremente os jogos com os quais
todos se divertiam.
Fui e serei sempre uma ovelha num
rebanho. Rebanho esse preenchido por elementos todos eles da mesma
cor, pois não havia um único que se revelasse negro como a célebre
fábula que me habituei a escutar em criança. Não sei bem a razão,
mas estranhava esse mundo no qual vivia, por sermos todos iguais,
demasiado normais.
Por isso, ao sentir-me dessa maneira,
fiz coisas que não quis. Roubei porque ninguém o fazia. Praguejei
bem alto e por toda a parte, pois apenas ouvia palavras doces e
melodias calmas. Sujei o que sempre fora imaculado. Reagi quando me
deveria calar.
Gritei. Amaldiçoei. Desesperei.
E tudo porque me sentia normal.
Ser como os outros num local perfeito
não é fácil. Não raciocinamos com identidade, não vivemos
enquanto seres independentes. Isso sempre me deixou à beira do
abismo, bem próxima de um estado de loucura que, transposta a
barreira, o retorno seria inviável. Talvez o melhor para mim
passasse pelo internamento num hospício, não fosse o facto de, até
nesse local repleto de gente supostamente louca, tudo ser normal como
em qualquer rua, lar ou espaço social.
Enquanto cresci este sentimento foi-se
agudizando, quase destruindo cada célula do meu ser. Teimei ser
diferente, mas nada conquistei. Esforcei-me por provocar olhares de
ódio, conseguindo apenas miseráveis expressões de simpatia.
Tinha 15 anos quando rapei o cabelo,
como os rapazes faziam, e mesmo assim eram poucos. Toda a gente riu,
gabando a minha ousadia e o meu jeito rebelde. Fiquei quase desesperada, pois
tornei-me ainda mais popular do que era, ainda mais normal no seio da
comunidade.
Depois passei a vestir-me de preto e a
maquilhar-me como nos filmes de vampiros. E a desilusão abateu-se
sobre mim novamente ao reparar que metade dos meus amigos imitou a
minha nova forma de estar, trazendo para a cidade uma moda que
parecia que vinha para ficar.
Quando atingi a maioridade grande parte
de mim mudou. Todas as hipóteses de deixar uma marca no mundo
pareciam ter esgotado. Tudo tinha feito para ser vista como alguém
que eu não era e nada parecia ter resultado. Foi então que pintei o
cabelo, de cor clara como as bonecas que sempre estiveram em voga,
voltei a vestir as cores femininas como todas as outras raparigas e
sorri como todas sorriam quando um elogio me era dirigido.
Tornei-me vulgar como sempre quiseram
que eu fosse. Dormi com os homens que queriam que com eles me
deitasse, aceitei bebidas de quem me queria ver alterada, fui dizendo
as piadas que todos esperavam ouvir e fiz todas as coisas indicadas
que os momentos exigiam que eu fizesse. Nada recusei, tudo aceitei.
Esforcei-me por ter um bom emprego,
porque isso faria de mim alguém normal.
Enquanto isso, cresci a vaguear pelas
ruas, cinzenta como todos os que me rodeavam, esquecendo-me aos
poucos de tudo o que sempre desejei: ser outra que não toda a gente.
Os meus passos não eram rápidos nem lentos, eram apenas. Caminhava
da mesma forma que todos o faziam, de olhar focado num ponto fixo no
horizonte, mas acerca do qual eu nada sabia, pois não era onde
verdadeiramente ansiava chegar. Mas de que valia pensar em algo que
nunca chegaria a alcançar?
Vivi então, sorridente e airosa,
fresca e agitada, até que o vi.
Ele estava especado a focar-me, como se
eu fosse aquilo que sempre quis ser: diferente. Ele era colorido no
meio de uma civilização pintada em tons neutros. Pensei que falasse
comigo e, por um instante, ponderei parar e abordá-lo de alguma
forma, dizendo o que pensava que sentia. Contudo ele manteve-se
quieto, como se estivesse hipnotizado, e eu prossegui, temerosa e
cobarde. Afinal só ele era colorido e devia ver-me, a mim, da mesma
cor que toda gente, pois eu era, e sou, um deles; Afinal, movo-me com
o rebanho, seguindo de um modo humilhante a sua orientação, sempre
incapaz de contrariar a tendência.
Durante dias bloqueei e temi
destacar-me da multidão. Pedi férias e depois baixa, e não saí de
casa. Os dias tornaram-se um par de meses vividos numa angústia
enorme, num medo atroz, receando tornar-me no que ele era e naquilo que eu
nunca cheguei a ser. Mas não houve um único momento em que não
tivesse sonhado em agarrar a mão daquele homem que aparentava ter a
minha idade e nunca mais a largar. E partir. Correr sem parar, para
junto dele, para longe de tudo.
Então, numa noite fria, ganhei coragem
e decidi deixar tudo o que até então conhecia. O seu olhar
continuava preso em mim, mesmo não estando presente, como se
implorasse que o procurasse, a ele que nem o conhecia.
***
Excelente!
Conto bem construído em redor de uma personagem polémica,controversa,mas surpreendente.
A nível linguístico o uso da escrita característica do Vasco,cheia de recursos expressivos (adjectivação,antíteses,metáforas),dá-lhe uma carga emocional muito forte.
Espero ansiosamente a parte III...